Lâmina afiada de Dalva de Oliveira é evocada em álbum que celebra 100 anos da estrela


Lâmina aguda que atravessou os anos 1950 como facho luminoso a irradiar fracassos afetivos em repertório folhetinesco que aglutinava sambas-canção, boleros, tangos e sambas, a voz matricial da cantora paulista Dalva de Oliveira (5 de maio de 1917 – 30 de agosto de 1972) reverbera em álbum duplo lançado pela gravadora Biscoito Fino neste mês de março de 2018 com o registro ao vivo dos dois shows realizados entre julho e agosto de 2017 para celebrar os 100 anos de nascimento da estrela ainda reluzente, inspiração do canto de outra diva daquela década, Angela Maria, não por acaso escalada para abrir o disco 1 com interpretação outonal do samba-canção Neste mesmo lugar (Klécius Caldas e Armando Cavalcanti, 1956).
Idealizado e produzido por Thiago Marques Luiz, o tributo duplo Dalva de Oliveira – 100 anos ao vivo oscila como todo disco coletivo do gênero, mas o saldo é positivo. Inclusive por misturar cantores musicalmente identificados com o tempo artístico de Dalva – vista em foto cedida pelo Arquivo Público de São Paulo para o álbum e reproduzida do encarte da edição em CD do tributo – com vozes emergentes na multifacetada cena contemporânea nativa.
Cabe ressaltar, a propósito, que o rigor estilístico do jovem Ayrton Montarroyos sobressai nesse disco 1 que reproduz 16 números do show roteirizado por Ricardo Cravo Albin e apresentado em 8 de julho de 2017 no Teatro J. Safra, em São Paulo (SP), cidade onde se radicou Montarroyos, cantor pernambucano que dá voz precisa a uma música pouco ouvida do repertório de Dalva, Não tem mais fim (Hervé Cordovil e René Cordovil, 1956).
Cantor que ombreia com Montarroyos no posto de melhor voz masculina da atual geração, o gaúcho cosmopolita Filipe Catto reacende a aura sentimental do registro andrógino de contratenor para inventariar dores conjugais em medley que agrega Tudo acabado (J. Piedade e Osvaldo Martins, 1950) e Errei, sim (Ataulfo Alves, 1950), títulos alusivos à ruidosa separação de Dalva e Herivelto Martins (1912 – 1992), partner da cantora desde os tempos pioneiros do Trio de Ouro.
O inventário dessa dor de amor expiada em praça pública e em discos rendeu sambas-canção como Calúnia (Paulo Soledade e Marino Pinto, 1951), revivido com classe e emoção por Alaíde Costa em grande interpretação. A mesma classe foi posta por Célia (1947 – 2017) no canto de Mentira de amor (Lourival Faissal e Gustavo de Carvalho, 1950) na última gravação desta grande cantora que saiu de cena no ano passado e a quem o produtor Thiago Marques Luiz dedica o disco.
Capa do álbum ‘Dalva de Oliveira – 100 anos ao vivo’
Divulgação / Biscoito Fino
Com agudos virtuosos que remetem ao canto lírico de Dalva, Tetê Espíndola solta os pássaros na garganta, deixando escapar também parte da ternura melancólica que pauta o pioneiro samba-canção Linda flor (Yayá) (Luiz Peixoto, Marques Peixoto, Henrique Vogeler e Cândido Costa, 1929). Também lançando mão dos agudos, a digna dama do cabaré Cida Moreira soa mais atenta aos versos de Velhos tempos (1959), parceria improvável do carioca bossa-nova Carlos Lyra com o compositor fluminense Marino Pinto (1916 – 1965), hábil letrista de cinzentos sambas-canções como Segredo (1947), parceria com Herivelto Martins confiada a Claudette Soares, intérprete de mais bossa do que dramaticidade.
Já Maria Alcina dribla a insuficiência do arranjo de Kalu (Humberto Teixeira, 1952) – baião que pedia instrumentos típicos da música nordestina –com a habitual vivacidade, se comunicando bem com a plateia. Edy Star também brilha ao simular um cabaré particular para interpretar o tango Fumando espero (Juan Villadomat Masanas e Félix Garso em versão de Eugênio Paes, 1955) com a devida passionalidade.
Márcio Gomes enfatiza a opulência vocal ao emendar Ave Maria (Vicente Paiva e Jayme Redondo, 1950) e Ave Maria no morro (Herivelto Martins, 1942) sem feitio de oração. Sem a preocupação de mostrar virtuosismo, Virgínia Rosa se prova intérprete segura ao cantar Teus ciúmes (Lacy Martins e Aldo Cabral, 1935) assim como a dupla As Bahia e a Cozinha Mineira se revela grata surpresa ao cantar o tango Eu tenho um pecado novo (Mariano Mores e Alberto Laureano Martínez em versão em português de Lourival Faissal, 1958) em ritmo de bolero, tal como fez Dalva, se saindo bem fora do natural ambiente sonoro das cantoras Assucena Assucena e Raquel Virgínia.
Também merecem menções as intervenções das cantoras Xênia França, intérprete do samba-canção Pela décima vez (Noel Rosa, 1935), e Verônica Ferriani, que se confirma ótima cantora ao dar voz ao medley que junta Fim de comédia (Ataulfo Alves, 1953) com Não te esquecerei (Ana Luisa Costa Teixeira, 1960), música creditada equivocadamente no encarte do álbum aos compositores e ao autor da homônima versão em português de California dreamin’ (1965), suceso do grupo norte-americano The Mamas and The Papas.
Dalva de Oliveira
Reprodução parcial da capa do álbum ‘Dalva de Oliveira canta boleros’
Com resultado mais irregular, a gravação ao vivo do show da cidade do Rio de Janeiro (RJ) – também roteirizado por Ricardo Cravo Albin e apresentado em 24 de agosto de 2017 na casa de shows Imperator – tem aura mais kitsch. Entre altos e baixos, sobressaem a tarimba vocal das cantoras Áurea Martins, Júlia Vargas e Leny Andrade – intérpretes de Bom dia (Herivelto Martins e Aldo Cabral, 1942), Que será (Marino Pinto e Mário Rossi, 1950) e Há um Deus (Lupicínio Rodrigues, 1957), respectivamente – e a potência dramática da voz de Simone Mazzer, que acertou o passo do tango Lencinho Querido (El Pañuelito) (Juan de Dios Filiberto e Gabino Coria Peñaloza), na versão em português escrita por Maugeri Neto e lançada em 1954, sendo popularizada por Dalva em 1956.
Cabe destacar também as ótimas participações de João Cavalcanti e Zé Renato, dois cantores que se desviaram do trilho dramático que conduziu tributo em sintonia com o tom sentimental de grande parte do repertório de Dalva. Cavalcanti caiu no suingue ao cantar o samba sincopado Copacabana beach (Armando Cavalcanti e Klécius Caldas, 1958), pérola rara do baú da estrela. Já Zé Renato solou Palhaço (Nelson Cavaquinho, Oswaldo Martins e Washington Fernandes, 1952) somente com o toque do violão eletroacústico.
Contudo, é justo ressaltar que o canto exacerbado de Dalva ficou eternizado na história da música brasileira pela alta voltagem emocional. O que justifica que o tributo fonográfico seja encerrado com a interpretação sentimental de Hino ao amor (Hymne a l’amour) (Edith Piaf e Marguerite Monnot, 1950, em versão em português de Odair Marsano, 1956) na voz opulenta de Gottsha. A lâmina afiada da estrela Dalva de Oliveira cortava corações por expor emoções à flor da pele da alma humana. (Cotação: * * * 1/2)
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