Disco atípico de Gal Costa, ‘O sorriso do gato de Alice’ se conserva moderno após 30 anos


No álbum, produzido com sofisticação por Arto Lindsay e lançado em 1993, cantora deu voz a músicas de Caetano Veloso, Djavan, Gilberto Gil e Jorge Ben Jor. ♪ MEMÓRIA – O sorriso sempre foi uma das marcas de Maria da Graça Costa Penna Burgos (26 de setembro 1945 – 9 de novembro de 2022), a cantora baiana imortalizada como Gal Costa.
Na capa criada por Barrão e Luiz Zerbini para o álbum O sorriso do gato de Alice, lançado em outubro de 1993, o sorriso estava estampado na foto que focava somente a boca vermelha de Gal.
Disco que gerou controvertido show estreado em março de 1994, espetáculo revolucionário maltratado pela mídia mais interessada em espinafrar o diretor Gerald Thomas do que em apontar a beleza estética da cena, O sorriso do gato de Alice completa 30 anos em 2023 sem perda da vitalidade.
Analisado em perspectiva, o álbum se impõe como um dos mais modernos e atípicos da discografia de Gal Costa. O arquiteto do disco foi Arto Lindsay, produtor musical que ajudara a dar forma ao aclamado álbum O estrangeiro (1989), lançado por Caetano Veloso há então quatro anos, e que, na sequência, foi convidado por Marisa Monte a produzir o segundo álbum da cantora, Mais (1991).
Lindsay deu aura de sofisticação ao disco de Gal, formatado entre as cidades de Rio de Janeiro (RJ) e Nova York (EUA), onde foi mixado no Electric Lady Studios. Contudo, o maior requinte vinha do depurado canto de Gal, então ainda em fase de auge vocal. Nem a morte da mãe da cantora, Mariah Costa Penna (1905 – 1993), durante a gravação do disco, atenuou o brilho da voz de Gal.
Lançado originalmente nos formatos físicos de LP e CD, pela gravadora BMG, o álbum O sorriso do gato de Alice apresentou 11 músicas inéditas compostas por Caetano Veloso, Djavan, Gilberto Gil e Jorge Ben Jor – quatro gênios da MPB já entranhados na discografia de Gal (Djavan desde 1981 e os outros três desde a década de 1960).
Capa do álbum ‘O sorriso do gato de Alice’, de Gal Costa
Arte de Barrão e Luiz Zerbini
O disco abre com Bahia, minha preta, música em que Caetano Veloso repisa em território sagrado, evocando as origens de Gal ao celebrar personalidades da Bahia, “fonte mítica e encantada” em que jorra a negritude ancestral.
Na sequência do disco, a cantora cai no samba sempre esquema novo de Jorge Ben Jor, compositor de Bumbo da mangueira, tema metalinguístico. Com improvisos vocais da cantora ao fim da gravação, Bumbo da Mangueira bate em cadência bonita entre a tradição e a modernidade do samba.
Depois, Gal dá voz a (mais um) acerto do cancioneiro de Caetano Veloso, Errática, balada embebida em fina melancolia cuja letra inclui o verso reproduzido no título do disco O sorriso do gato de Alice. Gravada com o toque do violão de Paulinho da Viola, Errática é canção que poderia figurar no posterior Recanto (2011), o álbum concebido por Caetano para injetar ânimo na discografia, na voz e na alma de Gal.
Em seguida, Gal dobra vozes para seguir a procissão de Gilberto Gil em romaria. Gil é o compositor de Mãe da manhã. Emoldurada pelo violão e a viola de Paulo Bellinati, a faixa em feitio de oração está no altar das grandes músicas de Gil e da obra de Gal.
Na sequência, Gal canta Gratitude, canção escrita em inglês. Trata-se de parceria de Caetano Veloso com Arto Lindsay. Na batida suave do violão do recorrente Paulo Bellinati, a gravação remete à bossa que tanto influenciou Caetano e Gal.
Vem então Eu vou lhe avisar, música em que Jorge Ben Jor – violonista da faixa – põe toque de funk neste samba em que Ben bate na trave ao voltar ao futebol, tema recorrente na obra do compositor.
Após Nuvem negra, balada depressiva de Djavan eleita para promover o disco nas rádios, Gilberto Gil reaparece com samba, Lavagem do Bonfim, cuja letra imagética dialoga com a religiosidade católica de Mãe da manhã. O violão da faixa é o do próprio Gil. Se Mãe da manhã ilumina a devoção, Lavagem do Bonfim celebra a festa em nome do santo mais popular da Bahia sincrética.
Canção em inglês de Djavan com Arto Lindsay, Serene soa como a ressaca da festa. A faixa se afina com o espírito mais melancólico e íntimo da já mencionada Gratitude. Djavan toca violão em Serene. Ambas as canções são toques cosmopolitas em álbum que refina a brasilidade da verdadeira baiana.
Por estar embebida no universo do blues, a canção Você e você reitera o caráter universal de disco que parte da Bahia para o mundo. Na música, Gilberto Gil filosofa sobre a eterna luta do ser humano com os próprios demônios.
No arremate do álbum O sorriso do gato de Alice, Gal cai mais uma vez no suingue singular do samba de Jorge Ben Jor, Alkahool, em gravação embasada pelo baticum dos percussionistas Armando Marçal, Marcelo Costa e Mônica Millet.
Mesmo sem ter feito grande sucesso comercial, o álbum O sorriso do gato de Alice sedimentou a opção de Gal Costa por fugir das fórmulas sonoras que seguira nos anos 1980. Decorridos 30 anos, o disco se conserva belo, tão moderno quanto eterno, assim como o canto de Maria de Graça.
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