Agroecologia e ‘recaatingamento’ transformam paisagem e vida de famílias no Sertão


Projeto socioambiental em Caiçarinha da Penha trabalha na restauração do bioma e oferece, através de um instituto com foco na produção agrícola sustentável, oportunidade para mais de 40 famílias da zona rural de Serra Talhada. Sistema agroflorestal ajuda a manter agrícola da comunidade, sem impactos negativos a Caatinga
Ezequiel Quirino/TV Globo
“Quando eu acordo, antes das 5h da manhã, eu abro a janela e olho para a Caatinga, sinto o cheiro dela. Cheiro gostoso! Escuto o som dos passarinhos cantando, quando amanhece o dia”.
O depoimento é da agricultora familiar Lucineide Ferraz, 49 anos, apaixonada pela região em que vive e preocupada com o futuro: “me preocupo bastante com o desmatamento. Está acabando com tudo”. Quando questionada sobre o que a Caatinga representa para ela, a resposta é direta: “a vida”.
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Perguntada sobre sonhos, ela diz ter um: “fazer faculdade sobre algo da Caatinga, que é o que eu mais gosto, e dos animais”.
É com os olhos marejados de encantamento que ela fala da sua relação com o bioma. Em Pernambuco, há mais de 3 milhões de hectares de área de Caatinga desmatada. Além disso, apenas 2,65% da Caatinga de Pernambuco estão em área de preservação integral.
Lucineide Ferraz transforma os frutos da Caatinga em doces e geleias
Caroline Rangel/TV Globo
Lucineide é uma das 13 mulheres que trabalham no Instituto Serra Grande, localizado no distrito de Caiçarinha da Penha, na zona rural, a 43 quilômetros de Serra Talhada, no Sertão.
O projeto, que existe desde 2019, reúne 40 famílias das comunidades de Barreiros e Santana, num trabalho socioambiental – que é a recuperação e restauro de áreas desmatadas da Caatinga – e de agroecologia, preservando e aproveitando os frutos e folhas da vegetação do bioma, para gerar renda às famílias locais.
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A agricultora familiar, junto às colegas do Instituto, aproveita os insumos oferecidos pela Caatinga, como o umbu, o caju, o alecrim do mato e a quebra-faca, para fazer geleias, conservas, vinagres e bebidas fermentadas. Elas produzem 50 potes de produtos por dia e vendem em feiras, entre as comunidades, e pela internet.
Para fazer as receitas dos doces tudo é aproveitado. Enquanto a fruta é desidratada, o mel do caju é usado pra fazer licor. O umbu, colhido do pé, também é levado para casa, onde a produção acontece.
Instituto produz doces dos frutos Caatinga, como caju e umbu
Caroline Rangel/TV Globo
Há um ano, Tota Cavalcante começou a trabalhar no instituto. E assim como Lucineide, ela vê o projeto como um grande passo, para realização de sonhos.
“A pessoa pode juntar um dinheiro, juntar um pouco para o futuro, para quando estiver mais velho ter um dinheiro junto, para não depender dos outros. Meu sonho é fazer uma faculdade no futuro quando eu estiver podendo mais”, disse Tota, explicando que deseja fazer o curso de letras, para se tornar professora de português.
Agricultora Tota Cavalcante junta dinheiro que ganha pelo trabalho no instituto, para estudar no futuro
Caroline Rangel/TV Globo
O trabalho desenvolvido pelas mulheres da comunidade é presidido pela agricultora familiar Creuza Ferraz, de 69 anos. Aos 10 anos de idade, ela já trabalhava com agricultura.
Líder da Associação de Moradores da comunidade de Santana, no distrito de Caiçarinha da Penha, em Serra Talhada, Creuza tem facilidade para dialogar com as mulheres e famílias que vivem na área, principalmente sobre a importância das mulheres da região terem seu próprio trabalho, e pensarem num futuro melhor para elas e para o ecossistema em que estão inseridas.
“Aqui tudo é na base da mão. Não tem nada industrializado, e nem nós queremos. Nós queremos fazer artesanalmente, porque valoriza. É agricultura familiar”, pontuou a presidente.
O projeto do Instituto foi pensado desde 2003. Dona Creuza e outras mulheres da comunidade chegaram a fazer curso no Sebrae, para aprender a fazer doces, mas só em 2019, depois de muitos testes e estudos com frutas da região e da vegetação da Caatinga, começaram a fazer as geleias e compotas como um negócio local.
“Eu fui a primeira a fazer uma geleia de acerola, e deu certo. Aí eu mostrei no grupo, que as meninas criaram para a gente se comunicar. Aí, uma amiga minha fez outra em casa, deu certo também. Então, a gente começou fazendo em casa, com o aprendizado que a gente teve lá [no Sebrae]”, contou dona Creuza, enquanto mexia um doce de passa de caju.
Presidente do Instituto Serra Grande, Creuza Ferraz diz que projeto a valoriza agricultura, sem agredir a Caatinga
Caroline Rangel/TV Globo
O preço dos produtos varia de R$8 a R$30. São pelo menos oito horas de trabalho por dia para dar conta da produção. Todo trabalho feito pelas mulheres acontece na Fazenda Serra Grande, uma propriedade privada de 1.260 hectares, com 800 hectares de Caatinga preservada e 260 hectares de área reflorestada.
As terras são da família do coordenador do projeto socioambiental Serra Grande, Alvaro Severo. A área é da família dele desde a época do império, e sofreu com períodos de seca e degradação. Em 2019, quando decidiu morar em definitivo no local, resolveu abrir as portas da fazenda, incentivar as mulheres da região a enxergar oportunidade através da caatinga e orientar os agricultores sobre como é possível viver em harmonia com a terra.
“Essa área foi antropizada, ela foi utilizada por um método de agricultura que queimava, que compactava o solo, que salinizava o solo”, afirmou o coordenador, que tem um viveiro com 26 mil mudas nativas da caatinga, entre frutíferas e cactos, para reflorestamento.
Mais de 26 mil mudas de plantas nativas da Caatinga serão plantadas na região de Caiçarinha da Penha, para restaurar solo degradado
Ezequiel Quirino/TV Globo
As mudas são utilizadas na área da fazenda que um dia foi lavoura, em um sistema chamado de agroflorestal, onde espécies ameaçadas da caatinga dividem espaço com a plantação de feijão e mandioca, por exemplo. São grandes faixas de plantio com espécies alternadas.
A técnica é importante tanto no processo de recuperação do solo do bioma, como na prática da agroecologia, vivenciada pelas mulheres do instituto.
“A raiz da tuberosa, da mandioca, expande na terra. Então, quando chove, o fato desse solo não ser mais compactado ajuda para que a água da chuva, em vez de escorrer, infiltre. Então, a gente já tem um risco zero de erosão numa área como essa, porque a gente tem um poder de infiltração enorme. Justamente por causa dessas linhas de árvore que estão fazendo o processo de bombear água para o subsolo”, explicou Alvaro.
O sistema agroflorestal utilizado na fazenda é um experimento que ocupa 2,5 hectares de área. A expectativa é de que no próximo ano essa área seja expandida e ocupe 200 hectares de área, que poderá ser utilizada pela agricultura, mas sem impactos negativos à Caatinga.
Sistema agroflorestal é experimento para manter atividade agrícola, sem agredir vegetação da Caatinga
Ezequiel Quirino/TV Globo
“Recaatingamento”
O projeto socioambiental Serra Grande foi criado por Alvaro em 2003, pela inquietação com os impactos da seca na vida dos sertanejos e pela vontade de ver o bioma, exclusivamente brasileiro, vivo em Serra Talhada.
As mudas nativas do bioma, utilizadas no sistema agroflorestal e para agricultura sustentável, também ajudam a recuperar áreas degradadas da Caatinga, por causa das queimadas, pastagem e criação de caprinos, prática comum no Sertão.
Mas, de acordo com o coordenador do projeto, apenas o plantio de mudas nas áreas desmatadas não é suficiente para restaurar o bioma.
Para o trabalho do “recaatingamento”, como costumam chamar, é fundamental a presença da fauna. Alvaro conta que mais de 2 mil espécies nativas da caatinga já foram soltas na área da fazenda, pelo Ibama. E é essa prática, junto ao reflorestamento, que faz o bioma se recuperar.
“Hoje a gente vê crescer uma floresta. É com essa diversidade, com a ajuda da fauna, dos ventos, por isso que também é tão importante a gente ter a soltura desses animais, porque eles também ajudam nesse restauro também. O passarinho come uma semente aqui, mas, se você olha os pés do Juazeiro, por exemplo, vê que tem um Mandacaru dentro. Isso é efeito da dispersão da semente pelos pássaros. Eles usam Juazeiro, que é uma das plantas que demoram a perder copa, é a melhor sombra para ele. Ele come a fruta do Mandacaru e vai se abrigar no Juazeiro. Aí cria uma simbiose, nasce sempre um pé de Mandacaru dentro de um pé de Juazeiro”, detalha Alvaro, pontuando a importância não só dos pássaros, mas tatus e outros animais comuns da Caatinga, para ajudar no restauro da vegetação degradada.
Ivair de Lima criava pássaros em gaiolas, e hoje entende a importância deles em liberdade para o ecossistema
Caroline Rangel/TV Globo
Além das atividades desenvolvidas na fazenda, quem trabalha no projeto também promove rodas diálogos e cursos sobre educação ambiental, para as comunidades vizinhas. Ivair de Lima tem 21 anos, e desde os 10 anos criava pássaros em gaiola.
A família, que trabalha com agricultura, participou de uma das conversas sobre a importância de manter animais como pássaros, tatus, veados e emas, soltos na Caatinga. O diálogo conscientizou Ivair.
“Eu achava bonito eles cantando na gaiola, mas agora eu crio eles soltos. É mais bonito eles voando entre as árvores. E também ajudo no restauro da Caatinga com o sistema agroflorestal, plantando mudas. É importante esse cuidado”, declarou o jovem, que também ajuda o Ibama a soltar os animais silvestres na fazenda Serra Grande.
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