Conheça a cidade de Roraima que não pode ter cemitérios porque corpos demoram a se decompor; entenda


Solo de Pacaraima, na fronteira com a Venezuela, é formado por um minério que retarda a desintegração dos corpos. Município de Pacaraima fica ao Norte de Roraima, na fronteira do Brasil com a Venezuela.
Tiago Orihuela/Ale-RR/Divulgação/Arquivo
Já imaginou viver a vida toda em uma cidade e, quando partir, não poder ser sepultado nela? É o que acontece com a população de Pacaraima, cidade brasileira na fronteira com a Venezuela, ao Norte de Roraima, que não tem cemitério e nem pode ter.
Isso ocorre porque o solo de Pacaraima é carregado de caulim, um tipo de minério que retarda a desintegração de corpos, tornando-a muito lenta, quase eterna.
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No Dia de Finados, um feriado dedicado a orações e homenagens aos que já faleceram, celebrado nesta quinta-feira (2), moradores da cidade precisam visitar seus entes queridos enterrados em outros municípios de Roraima.
Desde 1995, ano em que Pacaraima foi fundada, a cidade nunca teve um cemitério. Uma das alternativas é enterrar na capital Boa Vista, distante 215 km.
No início, quando morriam, alguns moradores eram enterrados na região de Surumu, localizado a cerca de 70 km da sede de Pacaraima. A distância equivale a uma viagem de 1h30 de carro.
Inicialmente, pessoas eram enterradas a na região do Surumu, a cerca de 70 km da sede de Pacaraima.
Google Maps/Reprodução
Solo argiloso com terra úmida e macia
O caulim é um mineral formado por um grupo de silicatos hidratados de alumínio, principalmente a caulinita e haloisita. E é o caulim que predomina no solo de Pacaraima, como explica o doutor em bioestratigrafia e professor do curso de Geologia da Universidade Federal de Roraima (UFRR), Vladimir de Souza.
“O solo lá é muito rico em caulinita, aquela argilinha branca, e essa caulinita retarda a decomposição dos corpos. Quando você vai para Pacaraima consegue ver que tem um solo esbranquiçado. Se você enterrar qualquer coisa lá, não vai se decompor ou vai demorar muito a se decompor”, explicou.
O solo argiloso tem uma terra úmida e macia. Se um corpo for enterrado nessas condições, ocorre a saponificação, o processo que transforma o cadáver a ponto de conservá-lo da decomposição.
Doutor em bioestratigrafia e professor da Universidade Federal de Roraima, Vladimir de Souza.
Yara Ramalho/g1 RR
O caulim impede a desintegração do material orgânico, e o corpo humano é matéria orgânica. Vladimir explica que é essa condição que não permite a criação de um cemitério na área urbana de Pacaraima.
Segundo o pesquisador, o município ainda precisa passar por um mapeamento geológico completo, mas as suspeitas são de que a maior parte do território possui essa característica geológica. A única certa é: a sede de Pacaraima é formada por puro caulim.
Naturalmente, quando o coração deixa de bater, o corpo começa a se decompor, até restarem apenas os ossos. No entanto, se fosse enterrado em Pacaraima, o solo iria aderir aos tecidos do corpo e retardar a decomposição.
O corpo não passaria por um processo de mumificação — dessecação da pele e dos músculos que são conservados mesmo após a morte — pois, para isso, o ambiente precisa ser muito quente, muito seco ou muito frio.
“Não é que o corpo vai ficar preservado, ele vai se decompor, mas muito lentamente. O argilo mineral consegue retardar o processo de decomposição e, por ser uma argila, vai aderir aos tecidos do corpo, retardando todo o processo. Os corpos podem ficar anos e anos ali”, explicou Vladimir.
Doutora em geofísica e professora do curso de Geologia da UFRR, Lena Barata.
Yara Ramalho/g1 RR
Sob a mesma perspectiva, a doutora em geofísica e professora do curso de Geologia da UFRR, Lena Barata, reafirma que a geologia de Pacaraima é extremamente argilosa. Segundo ela, perfurações de poços na área urbana da região já indicaram que pelo menos 20 metros de profundidade do solo é só argila. Nas áreas rurais do município o número é muito maior: 70 metros.
Lena Barata explica que há três tipos de cemitérios: horizontal, vertical e jardim ou parque. No primeiro — e mais tradicional, as pessoas são sepultadas de forma subterrânea, o segundo ocupa menos espaço e o último possui uma área verde.
No cemitério horizontal, tipo mais comum e mais antigo de cemitério que existe, o ideal é que seja construído em terrenos que misturam materiais arenosos e materiais argilosos, o que garante a porosidade do solo — que não ocorre em Pacaraima.
“O que é essa porosidade? É o espaço vazio entre um grão outro, esse espaço vazio [é onde] vão passar os fluidos. Quando entra em decomposição, o corpo humano forma um líquido chamado necrochorume, e esse líquido pode ser altamente poluidor”, esclareceu Lena Barata.
Risco de contaminação
Composto por argila, a porosidade do solo de Pacaraima “cai bastante”. Nesse cenário, se o material orgânico não fluir de forma adequada, pode contaminar o meio geológico de forma superficial e em profundidade, chegando ao lençol freático — a reserva de água subterrânea —, de acordo com a especialista. E isto seria um risco caso tivesse cemitério na cidade.
“Isso vai ajudar a trapear, assegurar qualquer líquido que advenha da decomposição dos cadáveres, que pode ser poluidor. Esse líquido chamado necrochorume tem metais pesados e também pode conter patogenias. Essas patogenias podem fluir por algum corpo hídrico e contaminar a população ao redor, principalmente as patogenias como tétano e tuberculose”, ressaltou.
Localizada no extremo norte do Brasil e vizinha da Venezuela, a cidade é a porta de entrada para os venezuelanos que entram no Brasil por terra e o lar de 19.305 pessoas, segundo dados do Censo de 2022 divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Em 1997, o Cemitério do Surumu passou a se chamar Cemitério de São José. Localizado na região das comunidades indígenas Barro e Surumu, atualmente o local só recebe os moradores locais.
No Dia de Finados, os moradores das comunidades se reúnem e, em regime de mutirão, roçam as áreas interna e externa para deixar o local mais adequado à visitação dos familiares aos túmulos de seus entes queridos.
De acordo com a resolução ambiental do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), publicada em março de 2006, os cemitérios não podem ser construídos em Áreas de Preservação Permanente ou em outras que:
exijam desmatamento de Mata Atlântica primária ou secundária, em estágio médio ou avançado de regeneração;
em terrenos predominantemente cársticos, que apresentam cavernas, sumidouros ou rios subterrâneos;
tenham uso restrito pela legislação vigente.
Pacaraima não possuí essas restrições, mas por ter um solo essencialmente formado por caulim, não pode ter um local de “descanso para os mortos”.
Solo em Pacaraima é rico em caulim, mineral com aspecto argiloso
Reprodução/Google Street View
Na visão de Lena Barata, até seria viável, um dia, a construção de cemitério em Pacaraima. Mas, para isso seria necessário um estudo geológico que viabilizasse uma adequação ao tipo mais comum de cemitério, como a instalação de tubos que canalizassem o líquido que sai dos corpos em decomposição.
“Porque esse líquido [necrochorume] tem que ser canalizado e [isso é feito] por tubulações mesmo. Cada túmulo tem [ou teria] que ser captado para [o líquido] não ser disposto de qualquer forma em profundidade”, disse.
Auxílio funeral
Para lidar com esse fenômeno natural, a prefeitura de Pacaraima afirma que disponibiliza o Auxílio Funeral. Assim, quando uma pessoa morre, a família tem direito a urna e translado até Boa Vista, a 215 km de Pacaraima, onde o ente pode ser sepultado. Na capital, o falecido só pode ser enterrado no cemitério particular Campo da Saudade, localizado no bairro Centenário, porque no municipal não há mais vagas.
Sem vagas, o cemitério público Nossa Senhora da Conceição, localizado na zona Sul de Boa Vista, só enterra as pessoas que já possuem jazigo.
O benefício concedida pela Prefeitura de Pacaraima, no entanto, não contempla os familiares do falecido, que precisam se organizar por conta própria para acompanhar o enterro do familiar tão longe de casa.
População do município pode ser enterrada no Cemitério Campo da Saudade, em Boa Vista.
Juliana Dama/G1 RR/Arquivo
Enterro longe de casa
Morador de Pacaraima há 23 anos, o comerciante João Cleber, de 43 anos, precisou enterrar o avô em Boa Vista, em 2012. Ele conta que algumas pessoas conseguem enterrar o falecido nas comunidades indígenas de Pacaraima, mas a maioria prefere o fazer na capital de Roraima.
“Em termo de burocracia a gente prefere levar para Boa Vista e ter lá um enterro sem tanta complicação, sem tanta dor de cabeça. Já as pessoas que tem mais afinidade, que fazem parte do convívio dos indígenas tem aí uma facilidade para enterrar nas comunidades. Mas, a maioria das pessoas prefere levar mesmo para Boa Vista , até pelo quesito de burocracia”, explicou João.
A opção, no entanto, tem um alto custo para quem deseja velar o corpo em Pacaraima. Antes disso, o corpo precisa ir para Boa Vista, onde passa por exames e, em seguida, é liberado para a família. Caso o velório ocorra em Pacaraima, ele retorna para o município e após a cerimônia, é enterrado na capital. A família precisar custear um valor para acompanhar todo o processo.
“Então, sai bastante caro para a gente ter o ente querido enterrado em Boa Vista, se for seguir todos os protocolos, respeitando a situação do velório aqui em Pacaraima. Mas a maioria, quando leva para Boa Vista, já faz o velório lá mesmo, cerca de 90% [das pessoas] já faz na própria funerária e de lá já vai para o enterro”, esclareceu o comerciante.
Formação rochosa e mineral com potencial
Tirando a parte de que impede as pessoas de serem enterradas onde vivem, o caulim pode ser uma alternativa econômica para o município. Isso porque, de acordo com Lena Barata, a região de Pacaraima é essencialmente formada por rochas ígnesmáficas, que podem concentrar muito alumínio e potássio – a presença do caulim é resultado da forma como as rochas se desgastaram a milhares de anos.
“Existe um motivo geológico para o caulim estar lá, mais lá em Pacaraima do que no município de Boa Vista, por exemplo. Essa concentração lá em Pacaraima se deve pela forma como essa rocha ígnea passou pelo processo de intemperização”, afirmou a pesquisadora.
“O caulim pode ser usado na construção civil. Em que parte? Na própria construção da obra mesmo, de engenharia, dos prédios, da casa, da tinta. O caulim também é utilizado para revestimento de casas, porque como ele tem esse poder de absorção e adsorção, ele ajuda a segurar um pouco a temperatura. Então, ele meio que dá um resfriamento para casa”, completa.
O material também é usado na pavimentação das rodovias e ajudar a dar cor a um dos objetos mais comuns e usados do mundo: o papel.
Entrada de Pacaraima, cidade que não tem cemitério em Roraima
Reprodução/Marcelo Camargo/Agência Brasil/Agência Senado
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