Entenda por que linguagem inclusiva é contestada pelo presidente e Senado da França

Não há um consenso entre os linguistas franceses sobre a questão. Enquanto os mais progressistas defendem a escrita inclusiva, os conservadores a contestam. A maior crítica é em relação a supostas dificuldades extras que essas mudanças na linguagem suscitariam no aprendizado. Sérgio Rodrigues discute uso da linguagem neutra
A semana foi marcada na França por um acalorado debate sobre a linguagem inclusiva. Depois de um polêmico discurso em que o presidente francês, Emmanuel Macron, defendeu que “o masculino é neutro” na língua francesa, o Senado do país votou a favor de um projeto de lei que prevê proibir mudanças que possam diluir o gênero no idioma.
“Nessa língua, o masculino é neutro”, afirmou o presidente francês, Emmanuel Macron, em Villers-Cotterêts, a cerca de 80 quilômetros de Paris, onde inaugurou o Centro Internacional da Língua Francesa na segunda-feira (30). Embora tenha defendido que o idioma francês deve evoluir, o líder fez um apelo para que não se ceda aos “modismos contemporâneos”, classificando a escrita inclusiva de “ilegível”.
No mesmo dia, o Senado francês, dominado por conservadores, decidiu por 221 a 82 votos, aprovar um projeto contra a linguagem inclusiva. De autoria da senadora Pascale Gruny, do partido Republicanos (direita), o texto afirma que tem o objetivo de “proteger a língua francesa” e “contestar práticas de redação que substituam o emprego da forma masculina quando ela é usada em uma forma genérica”.
O projeto de lei prevê proibir o ensino da escrita inclusiva nas escolas, além de bani-la de documentos jurídicos, contratos de trabalho, regulamentos de empresas, entre outros. Para ser aprovado, o texto ainda deve ser analisado pela Assembleia de Deputados da França, onde há menos representantes conservadores do que no Senado.
A decisão, ainda que não seja definitiva, provocou indignação entre políticos progressistas, que classificam o projeto de lei como “retrógrado” e “reacionário”. O senador socialista Yan Chantrel diz que “a tentativa de controlar a evolução de uma língua pode provocar a morte dela”. A senadora ecologista Mathilde Ollivier afirmou que a escrita inclusiva “é um caminho em direção à igualdade entre as pessoas”.
Linguistas se dividem
Não há um consenso entre os linguistas franceses sobre a questão. Enquanto os mais progressistas defendem a escrita inclusiva, os conservadores a contestam. A maior crítica é em relação a supostas dificuldades extras que essas mudanças na linguagem suscitariam no aprendizado.
De maneira geral, a flexão de gênero feminino em francês se faz com o acréscimo de uma letra “e” no final da palavra masculina. No caso da escrita inclusiva, a construção é feita com o uso de ponto ou traço e o acréscimo de outro “e”. Por exemplo, “français” (francês), que seria o “gênero neutro” para se referir a todos os franceses, na escrita inclusiva seria “français.e”.
A comissão de Cultura do Senado francês aponta que a linguagem inclusiva é fruto de “uma iniciativa militante”, que pode levar a língua a “perder sua neutralidade intrínseca para se tornar um marcador político e ideológico”. Também considera que essa prática constitui “uma ameaça à inteligibilidade e à acessibilidade dos textos” e causaria problemas a quem sofre de dislexia.
Representação masculina no imaginário
O Alto Conselho para a Igualdade entre as Mulheres e os Homens (HCE, sigla em francês) – instância consultiva independente criada pelo presidente François Hollande – afirma que “a forma gramatical masculina empregada como neutra envia automaticamente a uma representação masculina”.
Mesma percepção da linguista francesa Julie Neveux que, em um manifesto no jornal “Libération” nesta semana, critica a ideia difundida nas escolas francesas durante o ensino da língua de que “o masculino prevalece sobre o feminino”. Ela argumenta que pesquisas mostram que quando o masculino é empregado como genérico, o feminino é excluído na interpretação e no imaginário das pessoas. Neveux também contesta a ideia de que a linguagem inclusiva seria mais complexa para as crianças: “o uso se aceita quando ele é praticado”.
O linguista Michel Launey afirma ao site da revista francesa Télérama que “não cabe ao presidente ou aos políticos decidir os rumos de uma língua, mas sim às pessoas que fazem uso dela”. Para ele, a língua francesa tem tomado o caminho de uma maior inclusão e representatividade criando versões femininas de palavras que até recentemente só existiam no masculino, como médico, professor e autor.
“Podemos realmente proibir a escrita inclusiva?”, questiona o jornal “Le Figaro”, lembrando que a prática já é adotada em escolas, universidades e empresas de forma não-oficial. O diário lembra que a própria ministra francesa da Cultura, Rima Abdul Malak, acredita que o projeto de lei aprovado pelo Senado é “excessivo”. “Uma língua não pode ser paralisada, ela está sempre em movimento. Não se pode bloquear através de uma lei a possibilidade de uma língua evoluir”, diz.
Adicionar aos favoritos o Link permanente.