Saiba como saga Harry Potter pode ajudar a entender nazifascismo e outros temas que caem no Enem


Neste Dia das Bruxas, professor de história da Unicamp destaca como história do bruxo mais famoso da literatura pode ajudar estudantes no processo seletivo. Harry Potter, interpretado pelo ator britânico Daniel Radcliffe
Reprodução/WarnerBros
Para uma geração inteira de fãs de literatura, a data celebrada nesta terça-feira (31) vai muito além do Halloween. É que há 42 anos, em 31 de outubro de 1981, Lilian e Thiago Potter foram assassinados por Lord Voldemort em sua casa na vila bruxa de Godric’s Hollow, no Reino Unido. Entretanto, ao tentar matar o filho bebê do casal, Harry, o feitiço ricocheteou e deu início a história do menino que sobreviveu.
E neste Dia das Bruxas, a saga do bruxo mais famoso da cultura pop ganha importância uma vez que pode ajudar estudantes a entenderem alguns conceitos importantes para a prova de história e até mesmo de redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), que acontece no domingo (5).
O g1 conversou com Victor Menezes, historiador e mestre em História Cultural pela Unicamp, criador do primeiro curso que usa Harry Potter para ensinar história, que detalhou como a saga do bruxo pode ajudar a entender nazifascismo e outros temas que caem no processo seletivo.
“O tema da redação do Enem costuma instigar os alunos a observar, analisar e fazerem considerações sobre questões atuais. (…) Mediante os problemas sociais que forem pedidos, a pessoa pode fazer conexões com temas que têm em Harry Potter”, afirma Menezes.
Famoso
Logo nas primeiras cenas de “Pedra Filosofal”, primeiro livro da saga Harry Potter, que depois invadiu as telonas, a professora de transfiguração Minerva McGonagall faz uma predição que valeria tanto para o mundo bruxo quanto para o nosso.
“Esse menino vai ser famoso. Não haverá uma criança em nosso mundo que não conheça seu nome”.
E de fato não é preciso ser fã da série de livros — que ainda é a mais vendida do mundo, mesmo entre polêmicas relacionadas à autora — para saber quem é Harry Potter. E sim, esta matéria vai ter várias revelações sobre o enredo da saga.
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A saga criada pela autora J.K Rowling terminou há mais de uma década, mas foi abraçada pela geração Z.
Apesar de terem vivido pouco da febre “Potterhead’, os jovens atuais ainda discutem “quais casas de Hogwarts pertencem e andam por aí com roupas que fazem referência à história”. Segue tão na moda, que está em produção uma série sobre a saga.
Estudante deixa local de prova com caderno de questões do Enem 2022
Érico Andrade/g1
Harry Potter e a História
Victor Menezes utiliza os livros de Harry Potter para fazer divulgação científica nas redes sociais, na página “Para Além de Hogwarts”. Ele entende que a saga de livros pode ser vista como um documento histórico.
Isso porque a literatura é uma expressão artística e documento de seu tempo.
“As obras literárias não são construídas num vácuo”, explica Menezes.
Dizer isso não significa dizer que Harry Potter pode ser lido como um livro de história. Afinal, para a decepção dos fãs, as corujas não trouxeram as cartas de Hogwarts ao completarem 11 anos.
Ainda sim, os livros de Harry Potter foram escritos dentro de um contexto histórico onde há a difusão de questões e ideais culturais, sociais e políticos, e isso resulta em diversas alegorias que podem ajudar os jovens a entenderem a história contemporânea do mundo “trouxa”.
Escritora britânica J. K. Rowling, autora de ‘Harry Potter’
Martyn Hicks, One Young World
Menezes destaca que a própria autora da saga, J.K Rowling, é fruto de uma Inglaterra que ajudou a derrotar a Alemanha Nazista na Segunda Guerra Mundial.
“O lugar de fala dela influencia na forma como ela vê o mundo que está ao seu redor e, consequentemente, como ela vai representar ou discutir ou falar a respeito desse mundo na sua obra literária”, afirma.
“Para entendermos Harry Potter, suas questões positivas e negativas, temos que entender que tudo que está ali é fruto do contexto histórico no qual a Rowling nasceu, cresceu e vive”.
Isso gera construções de vilões, tanto do ponto de vista ideológico quanto em relação à destruição causada por eles, inspirados no nazifascismo do século XX.
Inspiração que a própria autora já admitiu: em 2007, durante uma conversa com fãs em Nova York, Rowling afirmou que intencionalmente criou um mundo fantástico com questões e problemas muito semelhantes ao do mundo real no qual ela e os seus leitores vivem.
Harry Potter e Draco Malfoy duelam em cena de ‘Câmara Secreta’
Reprodução/WarnerBros
O racismo e os ‘puro-sangue’
De Star Wars a Jogos Vorazes, existe uma série de obras de ficção que se inspiram na história contemporânea. “A cultura pop ocidental se utiliza dos acontecimentos históricos para compor a ideia de bem e mal”, explica o historiador.
Mas Menezes destaca um ponto fundamental que diferencia Harry Potter das demais: o racismo como um dos principais motivos para os embates da série.
“A base da ideologia de Voldemort e dos supremacistas é o que a Rowling cria como uma alegoria ao racismo. Não é uma representação, porque o preconceito no mundo de Harry Potter não está conectado à etnia ou ao tom de pele de uma pessoa, mas está conectado a um conceito que a Rowling cria para a sua obra, que é o de sangue puro. O que impulsiona os intuitos políticos dos vilões é uma limpeza racial: expurgar do mundo bruxo aqueles que eles consideram inferiores”, explica Menezes.
Antes de atravessar a “plataforma 9 ¾” para o mundo bruxo, é preciso olhar para o nosso mundo. Menezes explica que o preconceito sempre esteve presente na história da nossa sociedade, mas, a partir do século XVIII, sob os ideais do racionalismo, o racismo ganha uma nova roupagem científica
Em outras palavras, o racismo passa a ser justificado por conceitos que, na época, eram considerados científicos — “hoje, sabemos que são pseudociência, mas antes as teorias eram aceitas pela maior parte dos intelectuais”. Isso deu margem para a ideia de superioridade racial.
De volta ao mundo bruxo, o preconceito contra os “trouxas” também é antigo: Salazar Sonserina, um dos quatro fundadores de Hogwarts, aceitava apenas alunos de “sangue puro” para sua casa. Ou seja, apenas estudantes que vinham de famílias inteiramente bruxas.
Menezes explica que, em Harry Potter, a magia é genética e a miscigenação também ocorre. Existem bruxos que casam com trouxas (pessoas não mágicas) ou nascidos trouxas (bruxos que nasceram de famílias não mágicas) e seus filhos são considerados mestiços, como o próprio Harry, e bruxos que nascem de famílias trouxas, provavelmente porque algum antepassado era bruxo.
O principal exemplo disso é a Hermione Granger, considerada a bruxa mais inteligente da série. Para os preconceituosos, como a família Malfoy, por exemplo, ela é considerada “sangue-ruim” e uma ladra da magia.
Hermione Granger durante uma aula de poções com Horácio Slughorn em ‘Enigma do Príncipe’
Reprodução/WarnerBros
Segundo o site Wizarding World, o antigo Pottermore, os bruxos se escondem dos trouxas e expor a magia à população não-mágica é uma infração ao Estatuto Internacional de Sigilo em Magia instaurado em 1692. Isso porque, no mundo de Rowling, também houve a Caça às Bruxas no início da Idade Moderna.
Por causa da perseguição, a Confederação Internacional dos Bruxos, uma espécie de ONU dos bruxos, optou por ocultar o mundo mágico dos trouxas. A decisão veio após uma série de discussões e não agradou a todos. Algumas famílias tradicionais, como os Malfoy e os Black, nutrem um profundo ressentimento contra a população não-mágica e defendiam uma guerra contra ela.
Esse pensamento preconceituoso contra os bruxos nascidos trouxas e os trouxas ficou latente ao longo dos séculos, até o surgimento de dois líderes supremacistas: o Gerald Grindelwald, cuja história é melhor explorada nos filmes de Animais Fantásticos, e, claro, Lord Voldemort.
Ironicamente, assim como Hitler era austríaco e não alemão, Voldemort é mestiço. Mas não vale dizer que o personagem é uma representação do líder nazista. Menezes explica que, ao mesmo tempo que existem similaridades entre as figuras, também existem diferenças: o vilão do mundo bruxo, por exemplo, não é imperialista e muito menos populista.
“Não há registro na saga de que o Voldemort tenha planos de expandir seu domínio além da Grã-Bretanha, e ele não gosta de aparecer para as massas e fazer discursos, diferentemente do Grindelwald, que faz as duas coisas. O Voldemort domina através do medo, já o Grindelwald, é o líder carismático”, explica Menezes.
Por isso, a chave para usar Harry Potter para entender a história contemporânea vai além de tentar encontrar personagens equivalentes da Segunda Guerra no mundo bruxo. Trata-se de entender as alegorias, que, por definição, são modos de expressão ou interpretação que consistem em representar pensamentos, ideias, qualidades sob forma figurada.
As alegorias presentes na saga servem para ajudar a entender como líderes supremacistas surgem nas brechas da democracia. Se você, ao estudar história, já se perguntou como foi possível que pessoas como Hitler, Mussolini e Stalin assumirem o poder, talvez sua resposta esteja, também, em Harry Potter: essas figuras só davam vazão a um discurso que era apoiado por muita gente da época.
“Essas dinâmicas do nazismo e da guerra não se referem às pessoas, e sim às instituições. É esse um dos comentários sociais presente na saga”, explica Menezes.
O que Lord Voldemort pretende ao assumir a liderança do mundo bruxo é dominar e exterminar os trouxas, que ele vê como população que ele vê como inimiga. Por isso, a saga do protagonista contra o vilão vai além da vingança.
“Lá em Ordem da Fênix, o Dumbledore pergunta ao Harry se ele ainda lutaria contra o Voldemort caso ele não tivesse matado seus pais, e ele diz que sim. Porque a luta contra Voldemort é a luta por qual mundo deve existir”, explica o historiador.
Ralph Fiennes aparece como o vilão Voldemort em cena de ‘Harry Potter e as relíquias da morte: parte 1’
AP
Autoritarismo e totalitarismo
Os últimos livros da saga fazem várias alegorias ao autoritarismo e ao totalitarismo. O primeiro acontece no 5º livro, após o retorno de Lord Voldemort.
Menezes lembra que, amedrontado com o possível retorno do Lord das Trevas e com a possibilidade de perder seu cargo, o Ministro da Magia Cornélio Fudge desacredita em Harry e passa a usar a mídia para atacá-lo. Ao longo de todo ano, o protagonista é retratado como um louco em busca de atenção. “É um exemplo de negacionismo”, diz o historiador.
Fudge acredita que Dumbledore e Harry pretendem formar um exército para tirá-lo do poder. Por isso, ele, como líder político, começa a subverter as instituições democráticas. “Aqui, ele se torna um líder autoritário e o mundo bruxo passa a viver sob uma ditadura, regime similar aos que vimos na América Latina no século XX”, comenta Menezes.
Exemplos disso são o julgamento do protagonista por usar magia fora da escola e intervenção da inquisidora Dolores Umbridge em Hogwarts, que transforma a aula de Defesa Contra as Magias das Trevas em algo puramente teórico.
Fudge só acredita no retorno de Voldemort após a batalha no Ministério da Magia no fim do livro. No início de Enigma do Príncipe é dito que ele abdicou do cargo, no entanto, a sua atuação só beneficiou o Lord das Trevas, que foi reunindo seus seguidores e agindo por baixo dos panos.
No 6º livro, os comensais da morte atuam como um grupo paramilitar e promovem ataques terroristas contra os trouxas. No fim, eles finalmente conseguem atacar Hogwarts e matar o diretor Dumbledore, o que dá brecha para que no 7º e último livro da saga Voldemort assuma o Ministério da Magia e transforme o mundo bruxo num estado racial totalitário.
Tal como na Alemanha Nazista, ao assumir a liderança do mundo bruxo, Voldemort passa a perseguir os nascidos trouxas e seus apoiadores, que são enviados para Azkaban (a prisão dos bruxos), torturados e mortos.
Em mais uma alegoria ao governo nazista, o Ministério da Magia começa a aprovar leis de segregação social.
“Surgem leis para autorizar o confisco das varinhas de bruxos nascidos-trouxas, sob a alegação mentirosa de que foi descoberto que essas pessoas não possuem magia e roubaram o objeto mágico dos puro-sangue”, pontua Menezes.
Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts
Divulgação
Desobediência civil e resistência
Em “Ordem da Fênix”, quando a Umbridge começa a sabotar o ensino de Defesa Contra as Artes das Trevas, Harry e seus amigos formam a Armada de Dumbledore. A organização estudantil nasce com o objetivo dos alunos aprenderem e praticarem os feitiços que são essenciais para que eles possam lutar contra Lord Voldemort.
Logo antes do começo das reuniões, no entanto, Umbridge suspeita de que os alunos estão tramando algo e instaura o Decreto nº 24 em Hogwarts, que proíbe organizações estudantis. Mas isso não impede a formação da Armada de Dumbledore.
“O que Harry e seus amigos fazem é um exemplo de desobediência civil: eles consideram a lei injusta e, por isso, a desobedecem. Um exemplo disso no nosso mundo é quando, seja na Alemanha ou na ocupação da França, as pessoas escondem judeus em suas casas ao invés de entregá-los para os nazistas, como mandava o governo”, explica o historiador Menezes.
Do 5º ao 7º livro, no entanto, essa desobediência vai se transformando mais uma vez em resistência. Mais uma vez porque os pais de Harry e de seus amigos bruxos já lutaram contra Voldemort antes de sua primeira derrota em 31 de outubro de 1981.
Agora, aqueles que sobreviveram, como os Weasleys, se juntam aos filhos para enfrentar o Lord das Trevas mais uma vez. Surge, então, uma nova resistência ao vilão. No mundo real, isso é uma alegoria aos exércitos que enfrentaram os nazistas. E, não por acaso, tanto Grindelwald quanto Voldemort são derrotados em duelos.
“No nosso mundo e em Harry Potter, os problemas não acabam após a guerra. O nazifascismo foi derrotado militarmente, mas a ideologia sobrevive e influencia nossa sociedade até hoje. Em Harry Potter, apesar da derrota do Voldemort, que é considerado o mal maior, ainda há desigualdades no mundo bruxo principalmente em relação às outras criaturas: os elfos domésticos seguem escravizados, centauros e sereianos continuam sem representação no Ministério da Magia”, pontua Menezes.
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